O Antológico Lalau - Stanislaw Ponte Preta

O antológico Lalau

Lá vinha eu ladeira abaixo, comendo minhas goiabinhas, quando cruzei com a figurinhaentusiástica de Bonifácio Ponte Preta (o Patriota). Mesmo subindo a ladeira ele conseguiamarchar, enquanto assoviava baixinho o Hino dos Dragões da Independência.— Olá! — exclamei eu, com as goiabinhas na mão.Ele parou, reconheceu-me e, após uma reverência, um tanto ou quanto germânica, lascou:— Como vai o caro patrício?Respondi que ia mais ou menos, enganando pela meia cancha, me defendendo como podia eatacando quando oportuno. Enfim, nem lá nem cá. Vivendo sem maiores sucessos.— O caro patrício engana-se — interrompeu-me ele. — Saiba que está de parabéns. É umorgulho para a nossa família ter escritor antológico em seu seio — abraçou-me em posturamilitar e, vendo as goiabinhas na minha mão, regozijou-se: — Oh… goiabas! Fruta brasileira.Adoro-as — apanhou um punhado delas e seguiu ladeira acima, comendo tudo, o miserável.Voltei para casa intrigado. Que história era essa de antológico? Será que o Bonifácio estavame gozando? A resposta obtive logo depois, quando a fogosa mucama veio trazer acorrespondência do dia. Entre os avisos de banco e outras cobranças envelopadas, um volumese destacava. Rasguei o papel e dei com um livro: Rio de toda gente: Antologia para o ensinomédio de português — Helena Godói Britto, M. Cavalcanti Proença, Maria da Glória SousaPinto. Abro o volume e lá está a dedicatória do ilustre polígrafo: “Ao Stanislaw, que honra estacoletânea nas págs. 23 e 100, muito cordialmente o seu admirador — Cavalcanti Proença”.Puxa! Então era isto? Aqui o filho de d. Dulce tinha se tornado antológico num livropedagógico? O que é a natureza, hem? Sinceramente, eu não merecia tantas lantejoulas.Começo a folhear a obra e dou com escritos meus: uma “História do Rio de Janeiro” queescrevi há algum tempo. Lá está o primeiro parágrafo: “A coisa começou no século XVI, poucodepois que Pedro Álvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou a confusão,isto é, encontrou o Brasil. Até aí não havia Rio de Janeiro”.Abaixo, o questionário para os estudantes: “CCOISA apresenta significado ‘preciso’,‘pejorativo’ ou ‘irônico’?”.E segue o texto:Depois de 1512, rapazes lusitanos que estavam esquiando fora da barra, descobriram uma baía muito bonita e, distraídos queestavam, não perceberam que era baía. Pensaram que era um rio e, como fosse janeiro, apelidaram a baía de Rio de Janeiro.Eis portanto, que o Rio já começou errado.Procuro o questionário: “‘Esquiando fora da barra’ é um anacronismo. Por quê? Que querdizer anacronismo? E sincronismo?”.Nessa altura começou a minha aflição. Que qui é mesmo anacronismo? Se eu cometi umanacronismo, tinha obrigação de saber na ponta da língua que diabo é anacronismo. Será oponto de semelhança entre coisas diferentes? Não, não… isto é analogia. Ah… deixa pra lá.Sobre o parágrafo transcrito há outra pergunta: “‘Como fosse janeiro’ é uma construção sintáticade uso clássico. Qual seria a forma mais corrente na atualidade?”.E assim segue o texto, acompanhado do questionário. Num certo trecho eu explico que osportugueses, de saída, não deram muita bola para o Rio de Janeiro e logo o questionário cobra amulta, querendo saber: “‘Não deram muita bola’. A expressão metafórica provém do jogo defutebol e significa não dar atenção. Explique como se compreende a translação do sentido”.Coitados dos menininhos que estiverem estudando meu texto. Eu, que escrevi, estou aquimeio sobre o embasbacado com essa tal de translação do sentido, imaginem as crianças doensino médio!De repente, a minha aflição aumenta assustadoramente. Lembro-me que, no tempo deestudante, eu e toda a minha turma odiávamos Camões por causa das análises dos Lusíadas aque nos obrigava o professor de português. Puxa vida… com a minha promoção a antológico,breve vai ter garoto aí me achando o maior chato do ano letivo.Preciso abrir os olhos. Camões não o fez porque só tinha um olho, mas eu estou com os doisem dia. É necessário abri-los.De: Febeapa - festival de besteiras que assolam o país, de Stanislaw  Ponte Preta

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